Enquanto o pastor esbraveja pelos alto-falantes que o “anjo do senhor vai limpar e fazer chu-chu-chu na humanidade”, um homem está sentado displicentemente ao lado de sua barraca, prestando mais atenção na quantidade de pessoas à sua volta do que nas pregações que vêm do ginásio. Usando um microfone dourado com a destreza e a experiência de um Roberto Carlos, Marquinhos anuncia que o novo disco da estrela Elias Silva, “A tua presença”, chegou “fresquinho, fresquinho” de São Paulo e está à venda por R$ 15. Preço especial de lançamento.
Quem passa pela principal rua do centro de Camboriú, cidade bucólica de 58 mil habitantes em Santa Catarina, parece hipnotizado pela voz pacificadora que vem do rapaz. Em instantes, o local está cheio e as três atendentes atrapalham-se atrás do balcão improvisado com um compensado e uma lona alaranjada para dar conta de todos os pedidos. Há praticamente toda a discografia de Elias exposta ali, além dos DVDs com os shows que faz pelo país sendo exibidos em uma televisão de LCD.
Ainda chamando o povo para conferir “o disco mais esperado do momento”, Marquinhos está feliz, admirando o resultado de seu trabalho. Seus olhos azuis e a pele morena combinam bem com a camiseta azul-piscina berrante que veste, com a devida impressão da capa do CD de Elias estampada. É assessor há oito anos e sente que está numa fase boa de sua carreira. É cumprimentado por muitos, tem bons contatos e conhece “praticamente todo mundo que está no mercado”.
Apesar de nunca ter frequentado uma faculdade, o assessor prova ser um mestre das lições de marketing, aprendidas na base da observação e da intuição. Só no encontro dos Gideões, evento realizado pela Assembleia de Deus anualmente na cidade, diz ter investido R$ 8 mil em revistas, anúncios e todo o tipo de propaganda que pudesse reverter em mais CDs vendidos. Deu certo. Em menos de um dia de trabalho, recupera o montante com folga.
Marquinhos e a música gospel ignoram o poder das grandes gravadoras. Nesse ramo, a maioria dos cantores atua independente de selos, agentes e comissões. Há algo de podre no reino das gigantes. “As comissões são mínimas, o cantor praticamente paga para trabalhar para a gravadora, é uma relação muito complicada”. Em tempos de downloads, aqui a tendência é entrar no jogo por conta própria.
Nas ruas laterais da praça, dezenas de barracas demonstram que a independência torna o mercado gospel muito mais competitivo. Iniciantes e quase famosos amontoam-se em palcos com menos de dois metros quadrados, iluminados por algumas lâmpadas incandescentes. Os pôsteres estão colados por toda a parte. Folhetos são distribuídos, outros assessores são vistos por todos os cantos. As músicas são de ritmos variados. Alguns tocam acordeão, outros violões e uns mais intimistas fazem versões à capela. Os que possuem algum sucesso preferem caminhões-palco, pagos em parceria com colegas de profissão. Ali, luzes coloridas e toda a pompa que o evento merece.
Ele passeia tirando seus dois celulares dos bolsos a cada cinco minutos. A cidade está apinhada de fiéis, que rezam diariamente das 07h30min às 22h no ginásio municipal e na sede da igreja, local onde fica um segundo estande do cantor, menor, com apenas dois funcionários.
Junto às orações, sobrevive um mercado de produtos nitidamente feitos em Taiwan. Há ainda aqueles sempre apetitosos quitutes de quermesses e muito lixo no chão. Podem ser tementes a Deus, mas a consciência ecológica passa longe de suas vidas.
Com uma estimativa de receber cerca de 170 mil evangélicos por ano, o encontro movimenta também uma área nem tão próxima da religiosidade. Bendito seja o visionário – ou o marqueteiro – que se dá conta que onde há tanta gente, há muitos eleitores. Nesta edição, a surpresa ficou por conta da aparição de quatro pré-candidatos ao governo do estado, do atual governador, Leonel Pavan e do tucano José Serra, apresentado à plateia como futuro presidente do Brasil. Sem falar nos deputados, vereadores e prefeitos que lotaram o palco.
Ignorando a maciça presença política, o assessor controla todas as atividades do cantor. É onipresente. Conhece os funcionários da equipe pelo nome, sabe quais serão os próximos shows do assessorado. Para passar os dez dias de evento, alugou uma casa que divide com os nove colegas que se revezam nas barracas e na organização da rotina de Elias. Recebe ele próprio durante as madrugadas o caminhão que traz de São Paulo mais cópias dos discos que vão se esgotando ao longo do dia. Não possui mais que 30 anos e esbanja vontade de continuar viajando pelo Brasil com seu cliente. Acha Camboriú um charme, mas possui terreno em Maringá, no Paraná, e outro no interior de São Paulo.
Nos alto-falantes, o pastor agora pronuncia sons incompreensíveis, seguidos dos gritos de aleluias dos fiéis. Ao fim do Gideões, Marquinhos pretende descansar. Em Balneário Camboriú, a vizinha famosa pelas praias e pela vida noturna agitada. Apesar dos menos de seis quilômetros que separam uma cidade da outra, Marquinhos nunca atravessou a BR-101. Depois, quer ir a Itapema, logo ali ao lado, que também não conhece “porque não dá tempo”, mas sabe que suas praias são ainda mais bonitas. E reflete, com o sorriso pacificador de sempre, que se na bíblia consta que até Deus descansou um dia, nada mais natural que o assessor também possa fazê-lo.
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da época do Gideões, restou este texto. Tentei publicar por aí, mas não foi dessa vez.